Instantes
inclusivos...
Perpetuar memórias.
A intenção de nos
colocarmos no lugar do outro é fundamental, os livros constituem um meio para compreender o
inexplicável da condição humana, testemunhos para perpetuar a memória futura, preservando o
passado.
Como poder abordar o que se recusa
sequer pensar, encarando a procura da interpretação do que em muitos casos não
é compreensível?
Desdobrar os sentidos que vão para
além de compreensão na comunicação de acontecimentos vividos, numa vinculação
de passar a mensagem metafórica. Bússola interna para resistir entre a espécie
humana na sua complexidade.
Situações difíceis de imaginar, em
muitos casos, mas que, infelizmente, se repetem hoje em dia e tendem a
perpetuar-se. É necessário não esquecer que as guerras continuam por diferentes
partes do planeta. Infelizmente o ciclo dos acontecimentos de barbáries
repete-se diariamente e voltará a repetir-se em diferentes formatos.
Na prática
pedagógica é necessário aludir aos tempos conturbados das diferentes nações, no
direito à liberdade de expressão. Importa para isso lembrar, preservando a
memória, infelizmente sempre atual. As guerras constantemente vividas, ódios
inexplicados, relações impossíveis determinadas pela diferença, acontecimentos,
infelizmente, permanentemente atuais, razões para a importância da partilha e
leitura destes livros.
Livros onde em
muitos casos, os narradores são observadores de um cenário
humano amotinado por situações dramáticas que na maioria dos casos
nos transportam a cenários de uma guerra, que, pode ser qualquer guerra... A
intolerância de regimes que a civilização humana revela no seu pior estado.
Contos onde se expressam os afectos verdadeiros e essenciais do ser humano como
solidariedade e amizade, a capacidade de apreciar a beleza em coisas simples,
mesmo quando parece que a vida se aproxima do seu término. Memórias de um tempo
de preconceitos e barbáries que é preciso lembrar, dolorosamente, sempre,
atual.
A Máquina infernal com texto e ilustração de Alain Corbel assenta numa
metáfora da capacidade inata do ser humano para o bélico, catarse positiva que
permite que a brincadeira se converta em algo pacifista. Os comportamentos e
consequências das palavras e dos gestos, que por analogia podem converter-se no
seu inverso. A guerra e as suas consequências na esperança fervorosa de que as
crianças podem mudar o mundo.
A ilustração manual de técnica mista,
com a presença complexa na diversidade de materiais (guaches, pastel e
aguarelas entre outros) oscila entre o colorido do mundo positivo e o contraste
com cores quentes mas pouco saturados na presença dos cenários bélicos. Uma
narrativa nada infernal para contrariar os impulsos belígeros.
La guerre des mots, (A guerra das letras, em português) tendo como fundo central a
discriminação, aborda a supremacia de uma raça, crença na neglicência pelo seu
semelhante. Neste caso o mundo dominado por números em detrimento da
comunicação verbal, que fazem das letras rebeldes na luta pelo poder. A ilustração
digital, de cores garridas maioritariamente opostas ou complementares, sobre
fundo preto e colocadas de forma dinâmica, utiliza os contrastes entre as
formas e cores, complementado depois por traço livre. As personagens, cuja
anatomia geometrizada é ilustrada por números ou letras remetem para a
simbologia humana.
Analogias e metáforas facilmente
identificáveis por adultos atentos, com referências artísticas, a momentos da
história da pintura (Delacroix; Caspar David Friedrich) e da fotografia
(batalha de Iwo Jima) entre outras, num espetacular e ambicioso desfile
estético com um remate feliz e apelando à pacificação de contendas.
Merecidamente recomendado pela Amnistia internacional pela abordagem no
respeito pelos direitos para todos em todo o mundo.
A guerra de Anaïs
Vaugelade
Uma ilustração com fundos que mostram
panoramas de aguadas ténue sem grande detalhe, muito fluídas a transportarem o
leitor para um cenário envolto numa espécie de fumo, manchas simples que tomam
forma através da linha, em correlação com o distanciamento das pessoas ou do
assunto principal. A construção das personagens simplifica a anatomia com
proporções levemente “acaricaturadas” que entregam mais dramatismo às
personagens.
Uma narrativa metafórica criada pela
analogia e simbologia das cores, cores com vários tons da mesma gama e
intensidade de um exército azul e um outro vermelho, fruto dos respetivos
reinados nas suas rivalidades. A abordagem da insignificância das guerras e o
impacto destas, na vida das pessoas. Dois exércitos inimigos que através da
astúcia de uma criança se tornam aliados contra um terceiro reino, o dos
amarelos, que tarda em chegar ou que
nunca chega, fazendo com que os pontos de vista da cor se esbatam para nunca
existir mais qualquer guerra.
Warum? (em português: Porquê?) de Nicolai Popov (ilustração).
De
repente do meio do nada a quebrar o silêncio, quando menos se espera a confusão
instala-se. Um livro de imagens de ténues manchas aguadas bastante constantes, mantendo a
uniformidade estética que se progressivamente se intensificam na quantidade e
na força do contraste ilustrativo ajudando ao dramatismo da narrativa. Manchas
constituem a forma e cor, que ganham forma através da linha de forma
antropomorfizada. Personagens de animais são simplificadas ao elemento mas não
em demasia, ainda assim com pontual pormenor com impacto universal da
caracterização humana, as duas espécies em questão (rãs e ratos), apresentam-se
como massificação, não existindo individualidade dentro da espécie, por
assemelhação à massa humana que carateriza o aglomerado de um povo, de um
exército em detrimento da individualidade de cada um. Sendo a estória contada
só através de imagens, a parafernália de maquinaria é interpretada como uma
espécie de reciclagem de elementos inesperados (sapatos, chapéus), dando a
ideia de uma dimensão pequena em termos de escala do universo onde decorre a
narrativa. No final, como em todas as guerras já nada resta, só destroços e
terra desbravada, assim simplesmente, só nos resta perguntar: Porquê?
L´ennemi (em português: “O inimigo”)
A guerra tem sempre dois lados.
Neste caso dois homens e duas trincheiras, o que os distingue? Serem o inimigo.
Mas como é o inimigo. ? " O inimigo
está lá mas eu nunca o vi." Um homem como qualquer outro, com família,
com receios. A separação de uma extensão de terreno. Um jogo de espera e de
desespero perante a inutilidade da guerra.
Ilustração simples mas poderosa,
próxima do “cartoon”, caneta e tinta, com elementos de colagem como fotos de
família, fornecem aos leitores uma visão panorâmica nas semelhanças dos homens.
O espaço branco, vazio da página, dá a grande dimensão da solidão e do vazio,
ao mesmo tempo que se centraliza no foco principal sem pormenores distratores
para a convergência da narrativa. De traço, que muitos poderão considerar
infantil, é um traço objetivo na realidade do que é focado. As texturas como
factor de aparente trimendimensional, como as dobras das páginas, ou os buracos,
constituem um jogo estético belissimamente construído.
Um livro de imagens da dupla Davide Cali
e Serge Bloch (este último, recentemente esteve entre nós em destaque na
Ilustrarte 2016 e ambos participaram o ano passado num Colóquio na Gulbenkian
sobre Livro Infantil). Um olhar sobre o soldado solitário num campo de
batalha estéril. A ironia da componente humana. O que cada um descobre, como a
história se desenrola, é que o inimigo não é uma besta sem rosto, mas sim uma
pessoa real, com a família, receios e sonhos. Mais um livro recomendado pela Amnistia internacional pela abordagem e
reflexão sobre as causas e consequências
da Guerra Mundial no Século XX.
O principio texto de Paula Carballeira e
ilustração de Sonja Danowski oferece-nos uma ilustração híper realista que
partindo dos elementos reais os exagera enfatizando o dramatismo (tanto
personagens como os elementos) com cores pouco saturadas e ténues (uma palidez
que se assemelha à lividez dos rostos tristes que vivenciam os trágicos
acontecimentos). Uma textura de cores
bastante trabalhada que se vão fazendo notar mais com o impacto da transição da
estória num apelo à esperança. O fim de algo como no ciclo da vida predispõem um
novo inicio. Um apelo à esperança num relato poético da voz de uma criança que
nos apresenta o decorrer de uma guerra.
Livros que invocam as guerras que
infelizmente se sucedem. Momentos trágicos da humanidade, circunstâncias que
eventualmente não queremos ver repetir, questionando-nos como são possíveis na
evolução filogenética, e que vão sendo continuamente replicados.
Elvira Cristina Silva
A Máquina
Infernal. Alain Corbel (Texto e
Ilustração) Caminho (2005)
La guerre
des mots. Dedieu/Marais – Editions Sarbacane (2012)
A Guerra. Anaïs Vaugelade (Texto e
Ilustração). Editora Ambar
(2002)
Warum?.
Nicolai Popov. Neugebauer Verlag (1996)
L´ennemi. Davide Cali (Texto) Serge Bloch (Ilustração) Sarbacane
(2007)
O principio. Paula Carballeira (Texto) Sonja
Danowski (Ilustração). Kalandraka (2012).