domingo, 19 de maio de 2024

Instantes Inclusivos - Olhares peculiares vividos em nome próprio

 Nesta rubrica, neste semestre, são abordados livros que quase me arriscaria dizer, escritos em nome próprio.

Embora ligados a uma editora, as autoras decidiram a publicação das suas narrativas, visando a partilha da diversidade das problemáticas de desenvolvimento, com vista ao conhecimento daquelas, com as suas características e especificidades, mas essencialmente com a necessidade premente de apelo à inclusão.

Nesta seleção, apresento a escrita de três mulheres, quer na sua função de docentes ou mães, que partilham com a comunidade educativa, através das suas narrativas escritas, a experiência vivenciada das diferentes problemáticas.

Não são livros que essencialmente, no seu foco, sejam destinados exclusivamente a crianças. Embora pensados como sendo esse o público alvo, é a via para partilhar com a comunidade educativa, algumas dificuldades no desenvolvimento, alertando para o facto de que atrás das dificuldades e obstáculos, existe a necessidade de respeito pela diferença, a esperança, mas também as potencialidades e sobretudo a resiliência.


Esmeralda, a menina com síndrome do amor (Chiado Editora - 2017)

Serafim, Fã de rotinas (Edições Vieira da Silva (Edições Vieira da Silva - 2021)

Ilustrações de Nuno Ezequiel

   

No primeiro caso, facilmente é identificada a problemática da protagonista. Já no segundo caso, talvez, só docentes e pais que conhecem a problemática compreenderão o "subtítulo". Satisfaz-me este último caso, preferencialmente. Mais do que nomear as especificidades, é manifestamente mais relevante potenciar o respeito pela diferença. É também, nesta premissa, que a autora, docente de educação especial, escreveu ambos os livros.

Com base no seu conhecimento profissional, quer a personagem Esmeralda, como o Serafim, são crianças que frequentam a mesma escola. É no segundo livro que se conhecem, pois Serafim chega como novo aluno.

As questões de crianças e professores são o foco das narrativas, acompanhadas com frequente sentido de humor, sempre na valorização das capacidades intrínsecas de cada criança, como sendo muito mais relevantes do que as suas dificuldades aparentes.

No primeiro caso, a Esmeralda, é-nos apresentada por um amigo que descreve a protagonista. Através da sua curiosidade, vai questionando diferentes personagens para a explicação do comportamento de Esmeralda, para os quais vão surgindo diversificadas justificações, através de um texto curto, linear em cada página, sempre acompanhado por grandes ilustrações de aguarela e lápis de cor.

No segundo livro, mantém-se o mesmo amigo, como narrador, sendo ele próprio que nos descreve as características e potencialidades do Serafim. Também, neste caso, acompanham o texto, ilustrações de aguarela e lápis de cor, em grande plano, de cores diferentes e garridas nas várias páginas, existindo, por vezes, em alguns casos, um certo desequilíbrio e incoerência nas cores escolhidas. Não retira o valor da intenção narrativa, mas abunda, em minha opinião, grande quantidade de estímulos visuais.

Ambos os livros, requerem mediação para melhor eficácia junto do público alvo.


O enigma de Caetana 

Ângela Silva Pinho e Vítor Lopes

Pais em rede (2020)

 

O enigma de Caetana apresenta-se como um livro singelo, despretensioso mas muito eficaz no duplo olhar de duas realidades observadas e vividas pela autora.

Por um lado, o olhar curioso e atento da criança protagonista para comportamentos peculiares do personagem Lourenço, e ao mesmo tempo sagaz na observação dos outros pela especificidade.

Apelando, direi eu, às suas recordações e vivências de mãe, a autora, coloca o leitor nos sapatos do outro, podendo facilmente percecionar  as realidades diferentes da sua, reconhecendo no discurso inclusivo as características identitárias da problemática mas, permitindo paralelamente aos leitores, reconhecer a diversidade desses registos onde reside a resiliência de quem os observa e experencia.

Nestes dois paralelos, vivenciamos ambos os personagens, porque o enigma de Caetana reflete as dúvidas de quem desconhece tais comportamentos, mas também o observador exterior, neste caso a autora, que sabiamente os sabe descrever e melhor ainda, justificar.

A articulação entre o texto e as imagens, predominantemente de linhas, muito simples, combina-se na sequência de acontecimentos, personagens ausentes de cor, apenas com alguns pormenores (laço no cabelo da personagem Caetana e cabelo louro do personagem foco da narrativa inclusiva), dando espaço ao leitor para a depuração da linguagem que atinge uma simplicidade potenciadora da compreensão e do interesse das crianças.

Mais do que dar este livro para a mão das crianças é importante fazer a sua mediação. A autora, docente, atenta ao contexto educativo, realça pormenores peculiares que permitem diferentes leituras para diferentes leitores. A subtileza e a inteligência com que se abordam as questões de Caetana começam por cativar o leitor, instigando-o e questionando-o de forma permanente. Só no final do livro, muito discretamente, se identifica a problemática do Lourenço e é neste remate final que a delicadeza da autora remete para a protagonista os sentimentos nela presentes, deixando para o leitor a mensagem que se impõe. A vida é ela própria um enigma, não há barreiras para não desfrutar dela!

 


As conquistas do Larico - Planeta das palavras

Carolina Chaves Graça Morais e Joana Leitão ilustrações de Raquel Pessoa e Costa 

Flamingo (2022)

O livro, As conquistas do Larico, constitui-se, em primeiro lugar, como um testemunho de mãe, a Carolina, na partilha do que é ter um filho com Síndrome de Angelman, permitindo aos leitores, eventualmente, reconhecer algumas características desta problemática.

O depoimento da mãe é logo elemento de nota na referência inicial do texto, na sua dedicatória ao seu filho António, protagonista Larico desta aventura, bem como é partilhado com o leitor a página de apresentação da Associação Síndrome de Angelman (associação, que, curiosamente, também possui um livro sobre a temática intitulado “Quem disse que os anjos não têm costas?”).

Deste modo, sabemos logo à partida, o contexto do livro, o seu objectivo, e de certo modo, os seus destinatários. Percebemos que o mote da existência deste livro é seguramente a partilha com os outros, (comunidade em geral) nas questões da problemática, nesta aventura, em particular, a busca das palavras.

É nesse contexto que surge este projeto com vista à inclusão, que se apresenta em formato livro. A mãe do protagonista juntou as suas palavras com as de Joana Leitão, surgindo deste modo a narrativa que necessita de alguma contextualização.

Identifica-se pormenores do quotidiano de uma família, perspectivadas pelo olhar peculiar de alguém, neste caso, atrevo-me a afirmar, da mãe como narrador. Ela não se identifica, claro está, na sua narração, mas desde a leitura das páginas iniciais do livro, que é ela (a mãe) que lá está com o seu olhar sobre os acontecimentos do quotidiano, convocando o leitor, através do potencial imaginativo, idealizado por ela. É a sua presença constante que identificamos, na sua resiliência na busca das conquistas do António, em modo de convite num percurso que só o sonho e amor de mãe consegue alimentar.

Um texto em formato de aventura com algumas situações por resolver, é trazido até ao leitor pela voz da criança, que encontra na ilustração de aguarela uma colagem da narrativa descrita. Os acontecimentos desta aventura sucedem-se, refletindo o processo de descoberta e crescimento proporcionado pelas vivências da referida aventura.

Uma viagem, neste caso, um voo como ambição transformadora, com um final revelador do que se aspira para os nossos filhos/alunos, que é afinal de contas a aceitação da diferença e dos desafios como revelação (citando as palavras da mãe /autora numa “plenitude”).

Texto com uma narrativa emocional ao encontro da diversidade de sentimentos, na busca da superação das adversidades, nomeadamente a ânsia e desejo perfeitamente plausíveis de uma mãe que sonha/aspira uma viagem em busca das palavras, que mais do que imaginária se torna credível no desejo de qualquer mãe.

Este livro, em termos pedagógicos, na minha opinião, necessita de ser contextualizado por pais e professores para uma abordagem mais ampla do foco a que se destina. Já no final do livro existem ilustrações dos personagens para colorir. Estas propostas, podem ser alargadas, pelo mediador, sugerindo atividades sensoriais ou propondo eventualmente a construção de novos protagonistas, permitindo assim, alargar a criatividade do leitor a leituras transversais e paralelas, apelando mesmo a novas narrativas e finais.

Um projecto familiar/maternal com a decisão da narrativa através de uma viagem, que que é afinal de contas cada percurso individual, com um final repleto de amor incondicional.

Se o Larico possuísse as palavras que ainda não tem, estou em crer, que ele diria que esta mãe é uma lutadora incansável na missão a que se propôs - divulgar a sua experiência com os outros, enaltecendo as dificuldades da diferença, fundamentalmente com a capacidade do olhar atento para a premente inclusão.

 in: pág. 44 Revista Educação Inclusiva Vol. 13 - nº 2 - dez 2022

https://proandee.weebly.com/revista_v13n2_dez2022.html


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