A intenção de nos colocarmos no lugar do outro
é fundamental, os livros constituem um
meio para compreender o inexplicável da condição humana, testemunhos
para perpetuar a memória futura, preservando o passado.
Como poder abordar o que se recusa sequer pensar, encarando a
procura da interpretação do que em muitos casos não é compreensível?
Desdobrar os sentidos que vão para além de compreensão na
comunicação de acontecimentos vividos, numa vinculação de passar a mensagem
metafórica. Bússola interna para resistir entre a espécie humana na sua
complexidade.
Situações difíceis de imaginar, em muitos casos, mas que,
infelizmente, se repetem hoje em dia e tendem a perpetuar-se. É necessário não
esquecer que as guerras continuam por diferentes partes do planeta.
Infelizmente o ciclo dos acontecimentos de barbáries repete-se diariamente e
voltará a repetir-se em diferentes formatos.
Na prática pedagógica é necessário aludir aos
tempos conturbados das diferentes nações, no direito à liberdade de
expressão. Importa para isso lembrar, preservando a memória, infelizmente
sempre atual. As guerras constantemente vividas, ódios inexplicados, relações
impossíveis determinadas pela diferença, acontecimentos, infelizmente,
permanentemente atuais, razões para a importância da partilha e leitura destes
livros.
Livros onde em muitos casos, os narradores são
observadores de um cenário humano amotinado por situações
dramáticas que na maioria dos casos nos transportam a cenários de uma guerra,
que, pode ser qualquer guerra... A intolerância de regimes que a civilização
humana revela no seu pior estado. Contos onde se expressam os afectos
verdadeiros e essenciais do ser humano como solidariedade e amizade, a
capacidade de apreciar a beleza em coisas simples, mesmo quando parece que a
vida se aproxima do seu término. Memórias de um tempo de preconceitos e
barbáries que é preciso lembrar, dolorosamente, sempre, atual.
A Máquina infernal[1]
com texto e ilustração de Alain Corbel assenta numa metáfora da capacidade
inata do ser humano para o bélico, catarse positiva que permite que a
brincadeira se converta em algo pacifista. Os comportamentos e consequências
das palavras e dos gestos, que por analogia podem converter-se no seu inverso.
A guerra e as suas consequências na esperança fervorosa de que as crianças
podem mudar o mundo.
A ilustração manual de técnica mista, com a presença complexa na
diversidade de materiais (guaches, pastel e aguarelas entre outros) oscila
entre o colorido do mundo positivo e o contraste com cores quentes mas pouco
saturados na presença dos cenários bélicos. Uma narrativa nada infernal para
contrariar os impulsos belígeros.
La guerre des mots,[2]
(A guerra das letras, em português) tendo
como fundo central a discriminação, aborda a supremacia de uma raça, crença na
neglicência pelo seu semelhante. Neste caso o mundo dominado por números em
detrimento da comunicação verbal, que fazem das letras rebeldes na luta pelo
poder. A ilustração digital, de cores garridas maioritariamente opostas ou
complementares, sobre fundo preto e colocadas de forma dinâmica, utiliza os
contrastes entre as formas e cores, complementado depois por traço livre. As
personagens, cuja anatomia geometrizada é ilustrada por números ou letras
remetem para a simbologia humana.
Analogias e metáforas facilmente identificáveis por adultos
atentos, com referências artísticas, a momentos da história da pintura
(Delacroix; Caspar David Friedrich) e da fotografia (batalha de Iwo Jima) entre
outras, num espetacular e ambicioso desfile estético com um remate feliz e
apelando à pacificação de contendas. Merecidamente recomendado pela Amnistia
internacional pela abordagem no respeito pelos direitos para todos em todo o
mundo.
Uma ilustração com fundos que mostram panoramas de aguadas ténue
sem grande detalhe, muito fluídas a transportarem o leitor para um cenário
envolto numa espécie de fumo, manchas simples que tomam forma através da linha,
em correlação com o distanciamento das pessoas ou do assunto principal. A
construção das personagens simplifica a anatomia com proporções levemente
“acaricaturadas” que entregam mais dramatismo às personagens.
Uma narrativa metafórica criada pela analogia e simbologia das
cores, cores com vários tons da mesma gama e intensidade de um exército azul e
um outro vermelho, fruto dos respetivos reinados nas suas rivalidades. A
abordagem da insignificância das guerras e o impacto destas, na vida das
pessoas. Dois exércitos inimigos que através da astúcia de uma criança se
tornam aliados contra um terceiro reino, o dos amarelos, que tarda em
chegar ou que nunca chega, fazendo com
que os pontos de vista da cor se esbatam para nunca existir mais qualquer
guerra.
De repente do meio do nada a
quebrar o silêncio, quando menos se espera a confusão instala-se. Um livro de
imagens de ténues manchas aguadas bastante constantes, mantendo a
uniformidade estética que se progressivamente se intensificam na quantidade e
na força do contraste ilustrativo ajudando ao dramatismo da narrativa. Manchas
constituem a forma e cor, que ganham forma através da linha de forma
antropomorfizada. Personagens de animais são simplificadas ao elemento mas não
em demasia, ainda assim com pontual pormenor com impacto universal da
caracterização humana, as duas espécies em questão (rãs e ratos), apresentam-se
como massificação, não existindo individualidade dentro da espécie, por
assemelhação à massa humana que carateriza o aglomerado de um povo, de um
exército em detrimento da individualidade de cada um. Sendo a estória contada
só através de imagens, a parafernália de maquinaria é interpretada como uma
espécie de reciclagem de elementos inesperados (sapatos, chapéus), dando a
ideia de uma dimensão pequena em termos de escala do universo onde decorre a
narrativa. No final, como em todas as guerras já nada resta, só destroços e
terra desbravada, assim simplesmente, só nos resta perguntar: Porquê?
L´ennemi [5](em
português: “O inimigo”) A guerra tem sempre dois lados. Neste
caso dois homens e duas trincheiras, o que os distingue? Serem o inimigo. Mas
como é o inimigo. ? " O inimigo está
lá mas eu nunca o vi." Um homem como qualquer outro, com família, com
receios. A separação de uma extensão de terreno. Um jogo de espera e de
desespero perante a inutilidade da guerra.
Ilustração simples mas poderosa, próxima do “cartoon”, caneta e
tinta, com elementos de colagem como fotos de família, fornecem aos leitores
uma visão panorâmica nas semelhanças dos homens. O espaço branco, vazio da
página, dá a grande dimensão da solidão e do vazio, ao mesmo tempo que se
centraliza no foco principal sem pormenores distratores para a convergência da
narrativa. De traço, que muitos poderão considerar infantil, é um traço
objetivo na realidade do que é focado. As texturas como factor de aparente
trimendimensional, como as dobras das páginas, ou os buracos, constituem um
jogo estético belissimamente construído.
Um livro de imagens da dupla Davide Cali e Serge Bloch (este
último, recentemente esteve entre nós em destaque na Ilustrarte 2016 e ambos
participaram o ano passado num Colóquio na Gulbenkian sobre Livro
Infantil). Um olhar sobre o soldado solitário num campo de batalha
estéril. A ironia da componente humana. O que cada um descobre, como a história
se desenrola, é que o inimigo não é uma besta sem rosto, mas sim uma pessoa
real, com a família, receios e sonhos. Mais um livro recomendado
pela Amnistia internacional pela abordagem e reflexão sobre as causas e
consequências da Guerra Mundial no
Século XX.
O principio[6] texto de Paula Carballeira e
ilustração de Sonja Danowski oferece-nos uma ilustração híper realista que
partindo dos elementos reais os exagera enfatizando o dramatismo (tanto
personagens como os elementos) com cores pouco saturadas e ténues (uma palidez
que se assemelha à lividez dos rostos tristes que vivenciam os trágicos
acontecimentos). Uma textura de cores
bastante trabalhada que se vão fazendo notar mais com o impacto da transição da
estória num apelo à esperança. O fim de
algo como no ciclo da vida predispõem um novo inicio. Um apelo à esperança num
relato poético da voz de uma criança que nos apresenta o decorrer de uma
guerra.
Livros que invocam as guerras que infelizmente se sucedem. Momentos
trágicos da humanidade, circunstâncias que eventualmente não queremos ver
repetir, questionando-nos como são possíveis na evolução filogenética, e que
vão sendo continuamente replicados.
Elvira
Cristina Silva
2 La guerre des mots. Dedieu/Marais – Editions Sarbacane (2012)
3 A Guerra.
Anaïs Vaugelade (Texto e Ilustração). Editora Ambar (2002)
4 Warum?. Nicolai Popov. Neugebauer Verlag (1996)
5 L´ennemi.
Davide Cali (Texto) Serge Bloch (Ilustração) Sarbacane (2007)
6 O principio. Paula Carballeira (Texto) Sonja Danowski (Ilustração).
Kalandraka (2012).
Associação Nacional de Docentes de Educação Especial) Vol 7 - nº 1 (junho 2016) (pág. 45-47)
capa de Raquel Reis
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